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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Resenha: A PELE QUE HABITO


O presente trabalho obteve nota máxima na disciplina "Cinema e literatura", ministrada pela professora Scheila Pellegri na UNESP - FCLAr. Ele consiste numa resenha do filme “A pele que habito” (2011), dirigido por Pedro Almodóvar, a partir dos elementos de horror que fazem parte das opções de construção estética do diretor .

O horror como construção estética

Se o horror, como conseguimos depreender da análise de Das Unheimliche, do arqui-famoso psicanalista Sigmund Freud, está relacionado com o rompimento das expectativas de qualquer ação por meio de circunstâncias tais como o “medo da castração”, a “onipotência do pensamento” e o “duplo”, podemos afirmar que a narrativa fílmica La piel que habito (2011) – “A pele que habito” – realizada por Pedro Almodóvar é sutil, bem lavrada, mas é horror.
O longa-metragem estrategicamente não linear nos conta, em três atos, a história de Robert Ledgard – representado por Antonio Banderas. Num primeiro momento o que se vê é Robert realizando experimentos, no melhor estilo ficção(?) científica. Para análise um pouco mais aprofundada, vejamos o que nos diz De Sá, em seu artigo “Horror e Epifania” (2011),

Greimas, em seu Da Imperfeição, chama a atenção para um recurso utilizado na construção do sentido em que é a descontinuidade no discurso, a ruptura na vida representada, o detonador da passagem para um novo estado de coisas. Tal descontinuidade, fruto do que se pode chamar um deslumbramento, provoca uma fratura.

A partir disso, podemos afirmar que a delicadeza com que são mostrados os atos científicos pouco ortodoxos do Dr. Robert, a relação dele com Vera – o “experimento” –, que permanece trancada numa “cela”, a obsessão em encontrar uma pele extremamente resistente para ela, só podem ser compreendidos nas cenas seguintes e em flashbacks que vão sendo colocados no interior da narrativa. É a descontinuidade, portanto, que envolve o espectador e que faz com que ele, no decorrer do tempo, sinta o horror e o sentimento catártico às avessas de habitar a pele de outro.
            Os atos seguintes, portanto, fazem com que o espectador junte as peças descontínuas propostas pelo filme. Os transtornos psicológicos das personagens são apresentados de maneira tensa. Há seis anos, a esposa do cirurgião plástico Robert Lodegard teve o corpo completamente queimado ao envolver-se em um acidente de carro. Apesar de seus esforços, o médico nada pode fazer para ajudar na recuperação estética da mulher, que agora vive em completa escuridão e sem poder ver espelhos. A primeira tragédia é seu suicídio, que é presenciado por Norma, filha do casal, e que abala a jovem menina fazendo com que ela passe a viver à base de remédios e afastada da sociedade.
            Tempos depois, a segunda tragédia acontece: Norma, que vivera afastada, vai a uma festa e, o diretor parece querer que fiquemos em dúvida, é violentada por um rapaz, que depois se descobrirá que é Vicente, e acaba vindo a óbito. A dúvida, no caso, é se Norma queria ou não transar com o rapaz. Isto posto, Robert vai atrás do homem que “enganou” sua filha e, com ganas de vingança, aprisiona-o.
            O espectador sente o terror em forma de mal estar, o doutor barbeia Vicente e a navalha que ele porta parece querer dizer mais do que podemos compreender naquele momento, é “medo de sentir dor” que nos invade. Mas a compreensão vem e, aos poucos, percebe-se que a sanha de Robert o cegara. Em princípio, quer ele fazer com que Vicente pague pela tragédia que ele causara e, valendo-se de sua posição de cirurgião plástico, faz nele uma vaginoplastia. O horror aqui se encontra com o “medo da castração”, descrito por Freud.
Com o poder nas mãos, o doutor parece querer fazer com que Vicente pague por todas as tragédias e, nele, inicia os trabalhos de pesquisa, a fim de criar a pele mais resistente possível. Inundado de culpa pela incapacidade de ajudar a mulher a livrar-se daquela aparência de monstro que tivera antes do suicídio, resolve ele castigar sua cobaia com tais experimentos.
O horror não nos é colocado de chofre, ele é lançado calmamente. As peles que são postas e sobrepostas na cobaia Vicente transformam-no em Vera e o espectador compreende que o doutor resolvera recriar uma imagem idealizada da mulher no suposto estuprador, talvez para sentir-se menos culpado. A descoberta do absurdo da situação, da androginia transexualidade choca menos do que a crescente paixão que o criador sente por sua criatura.
O estarrecimento não sai em forma de grito, ele é contido, calmo e segue uma lógica que perturba: Vicente entra em contato com o seu par de oposição e, agora, é obrigado a assumir-se como Vera; Robert recria seu objeto de amor e, agora, vive as antíteses de amor e ódio; e o espectador vive a angústia de sentimentos dos dois e sente-se inundado de inquietações e de perguntas do tipo “seria isso possível?”, desconfiando sempre da idoneidade do homem.
A prática sexual de Robert e Vera é bela, porém deixa o espectador nauseado por compreender do que são feitas essas personagens, é esse o estranhamento familiar freudiano que escapa das telas e nos invade. De fato, aquela comunhão parece deixar claro que, apesar dos disparates da situação, os “duplos” irão integrar-se, entretanto, a fratura no cotidiano faz com que Vicente/Vera volte-se contra seu criador e num ato de decisão absoluta e de liberdade, atira no cirurgião. O incômodo que se sente ao decorrer do filme, ao invés do que se poderia imaginar, não se encerra ali. Ao final, Vera foge após ter matado Robert, volta para casa e vai ter de explicar para a mãe como aquela linda mulher pode ser o rapaz que há tempos desaparecera.
Ao espectador resta o incômodo permanente do duplo, da ruptura, da intencionalidade e da força das paixões no ser humano. O filme permanece, mas nunca como uma boa lembrança.


REFERÊNCIAS
SÁ, Sheila Pelegri de. Horror e epifania. A imperfeição reveladora em Anticristo e Cisne negro. in: XII Congresso Internacional da ABRALIC. 2011.

Obra fílmica
A pele que habito. Título original “La piel que habito” (2011). Espanha. Dir. Pedro Almodóvar 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

RECEITA PARA APIMENTAR SUA RELAÇÃO

RECEITA PARA APIMENTAR SUA RELAÇÃO

Deixe estar
Não pareça preocupado nem desleixado demais
Vá pegando devagarzinho-devagarzinho
Mas esteja confiante em seu potencial
            Pegue-a pelas mãos
            Depois, vá preparando o terreno
Libere uma das mãos e faça movimentos circulares
Alternando força e leveza até beatificar o que está ao redor de vocês
Eleve sua cabeça para fitá-la de frente
Com a outra mão force-a a fazer o mesmo com você
Esteja confiante em seu potencial
Olhe-a nos olhos
De-mo-ra-da-men-te
Comece a apalpá-la
Veja se ela gosta
Escute atentamente os gemidos
Mas escute mais ainda os gemidos que vão sendo abafados
Ouse mais
Fale indecências aos ouvidos dela
Veja se ela gosta
Deixe agora que ela fale nos seus ouvidos
Ceda espaço
Vá fazendo com que ela se solte
Isso, isso mesmo
Olhe nos olhos dela, já mudaram de cor?
Sinta o cheiro dela
Deixe-a sentir o seu
Comece a sorvê-la aos poucos
Agora, violentamente
Inunde-se! Inunde-se!
Feche os olhos e comece a unir-se a ela
Emaranhe-se até perder o que era corpo
Penetre
Primeiro suave
Depois com gana
Com força
Comungue de tudo que venha dela
Esteja atento aos detalhes mais sórdidos, mais picantes
Seja forte
Mantenha-se rijo
Dê a ela tudo de si
Até que uma explosão invada a ambos
E o gozo supremo faça de vocês um só, uma só alma
Você e a Poesia

Valmir Luis Saldanha

domingo, 21 de outubro de 2012

LISTA DE EXERCÍCIOS_ Capitães da Areia


PROF. VALMIR LUIS – LISTA DE EXERCÍCIOS - Com gabarito
CAPITÃES DA AREIA – Jorge Amado

1. Em que sentido a figuração do ambiente de Salvador, em que se opõe a cidade alta à cidade baixa, contribui para a figuração da temática de Capitães da Areia?

Capitães da Areia é uma obra neorrealista (modernismo de 1930), inscrita numa forte ideologia comunista. Sendo assim, a divisão de classes, bem como a caracterização maniqueísta daí derivada, são fundamentais na observação do mundo dos que excluem (cidade alta) e do mundo dos excluídos (cidade baixa).

2. O Padre José Pedro chegou a ser repreendido pelo cônego, durante sua atividade paroquial. Explique o motivo dessa repreensão.
A repreensão é consequência da vontade humanitária do Padre José Pedro, imbuído do sentimento cristão de auxiliar aos meninos necessitados. O cônego, por sua vez, representa a corrupção dos valores morais da Igreja e faz vistas grossas aos problemas sociais, preocupando-se apenas dos ricos.

3. Compare as personagens Pedro Bala e João de Adão no começo e no fim do romance.
João de Adão, um líder operário, é a personagem responsável por contar a Pedro Bala a história do pai deste, o Loiro. Ao conhecer as motivações do pai na busca de justiça social e compreender os motivos de ele ter sido assassinado, Pedro dá para si a mesma incumbência, mas diferentemente dos métodos praticados por Adão, Pedro busca um auxílio mais amplo, inclusive com a retaguarda do estudante Alberto, ingressando na luta política.

4. Que diferenças marcantes se poderia estabelecer entre as personagens Volta-Seca e Pirulito?
Enquanto Pirulito é um menino que, aos poucos, descobre a religião e que pratica apenas os roubos necessários à sobrevivência. Volta-Seca, que se dizia afilhado de Lampião, torna-se cangaceiro ao sair do bando.O primeiro é movido por um sentimento de sobrevivência que desemboca na religião, o segundo, pela dor e pela vingança, reorganiza-se em violentos assassinatos.

5. A imagem da personagem Dora transfigura-se durante sua participação no enredo. Apresente essa transfiguração, desde sua vida no morro até sua morte.
Dora sofre de todas as formas, no romance. Seus pais morreram, vítimas da varíola, quando tinha apenas 13 anos. É encontrada com seu irmão mais novo, Zé Fuinha, pelo Professor e por João Grande. Ao chegar ao trapiche abandonado, onde os garotos dormem, Dora quase é violentada, mas, tendo sido protegida por João Grande, o grupo a aceita, primeiro como a mãe de que todos careciam, depois como a valente mulher de Pedro Bala. Morre devido a uma forte febre, e se torna uma santa para os meninos, por causa da sua bondade. Para Pedro Bala, ela se tornara uma estrela.

Trecho: Em torno é a paz da noite. Nos olhos mortos de Dora, olho de mães, de irmã, de noiva e de esposa, há uma grande paz. Alguns meninos choram. Volta Seca e João Grande vão levar o corpo. Mas, parado ante ele, está Pedro Bala, imóvel. Volta Seca não pode estender as mãos. João Grande chora como uma mulher. [...] (p. 212)

6. Que diferenças podemos observar entre os destinos escolhidos pelo Gato e pelo Professor, tomando como ponto de partida o que eram no início da narrativa?
Gato – É o galã dos Capitães da Areia. Bem-vestido, domina a arte da jogatina, trapaceando, com seu baralho marcado, todos os que se aventuram numa partida contra ele. Além dos furtos e do jogo, Gato consegue dinheiro como cafetão de uma prostituta chamada Dalva, e, por isso, muitas vezes não dorme no trapiche. Só aparece ao amanhecer, quando sai com os outros para as aventuras do dia.
Professor (João José) – Intelectual do grupo, deu início às leituras depois de um assalto em que roubara alguns livros. Além de entreter os garotos, narrando as aventuras que lê, o Professor ajuda decisivamente Pedro Bala, aconselhando-o no planejamento dos assaltos. Com seu dom de pintar, acaba indo ao Rio de Janeiro tentar sucesso.

7. Alfredo Bosi diz que Capitães da Areia, tal qual outras narrativas de Jorge Amado, é uma narrativa de tensão mínima, ou seja, a progressão das personagens no tempo não causa nenhuma surpresa em relação às suas origens. Aponte o percurso de algum dos protagonistas do enredo que possa justificar plenamente tal inclinação da obra. Explique.
Sem-Pernas – Deficiente físico, possui uma perna coxa. Preso e humilhado por policiais bêbados, que o obrigaram a correr em volta de uma mesa na delegacia até cair extenuado, Sem-Pernas conserva as marcas psicológicas desse episódio. Isso provocou nele um ódio irrefreável contra tudo e todos, incluindo os próprios integrantes do bando. Morre ao se jogar de um penhasco, a fim de não se entregar à polícia.

Pirulito – Garoto magro e muito alto, com olhos encovados e fundos, era o mais cruel do bando, até que, tocado pelos ensinamentos do padre José Pedro, converte-se à religião. Executa, com os demais, os roubos necessários à sobrevivência, sem jamais deixar de praticar a oração e sua fé em Deus.

Boa-Vida – O apelido traduz seu caráter indolente e sossegado. É mais um malandro da cidade, que faz sambas e canta pelas ruas, nas calçadas e nos bares. Contenta-se com pequenos furtos, o suficiente para contribuir para o bem-estar do grupo, e com algumas mulheres que não interessam mais ao Gato.

João Grande – É um negro respeitado pelo grupo em virtude de sua coragem e da grande estatura. Com 13 anos, possui cabelo crespo e baixo e músculos rígidos. Por ser uma pessoa muito boa e forte, ajuda e protege os novatos do bando contra atos tiranos praticados pelos mais velhos.

Volta Seca – Mulato sertanejo de alpargatas, é imitador de pássaros e tem ódio das autoridades. Admirador do cangaceiro Lampião, a quem chama de padrinho, Volta Seca sonha com o dia em que participará de seu bando.

Padre José Pedro – padre de origem humilde, só conseguiu entrar para o seminário por ter sido apadrinhado pelo dono do estabelecimento onde era operário. Discriminado por não possuir a cultura nem a erudição dos colegas, demonstra uma crença religiosa sincera. Por isso, assume a missão de levar conforto espiritual às crianças abandonadas da cidade, das quais os Capitães da Areia são o grande expoente.

Loiro – Pai de Pedro Bala, era líder sindical nas greves antigas ao lado de João de Adão. Morreu em uma dessas greves.

8. Leia o texto abaixo e responda a pergunta a seguir:

Pedro Bala sorriu, porque sabia que o Sem-Pernas, quando queria, se fazia passar pelo melhor menino do mundo. A empregada continuou:
— É um pouco mais moço que você, mas é mesmo um menino. Não é assim um perdido como você, que até já dorme com mulher... — e ria para Pedro Bala.
— Foi tu que tirou meu cabaço...
— Não diga coisa feia. Demais é mesmo mentira.
— Juro.

Há no trecho ao menos um recurso de estilo marcante da narrativa Capitães da Areia e do estilo do autor. Aponte-o e explique.
Tanto a preocupação com o falar coloquial quanto a representação o mais fiel possível da realidade retratada são algumas das marcas do estilo de Jorge Amado.

9. Leia o texto abaixo e responda as perguntas a seguir :

Quantas horas? Quantos dias? A escuridão é sempre a mesma, a sede é sempre igual. Já lhe trouxeram água e feijão três vezes. Aprendeu a não beber caldo de feijão, que aumenta a sede. Agora está muito mais fraco, um desânimo no corpo todo. O barril onde defeca exala um cheiro horrível. Não retiraram ainda. E sua barriga dói, sofre horrores para defecar. É como se as tripas fossem sair. As pernas não o ajudam. O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração.

No trecho podemos observar dois recursos importantes na construção do estilo narrativo de Capitães da Areia: a onisciência do narrador e o naturalismo.

a) Explique como se dá tal onisciência no trecho.
O narrador invade a experiência de solidão de Pedro Bala e a descreve como se pudesse sentir o mesmo que a personagem sente.

b) Explique como se dá o naturalismo no trecho.
O rebaixamento da personagem à condição animalesca (zoomorfismo), quase destituída de racionalidade, ficando apenas no plano dos instintos, é um dos aspectos naturalista da obra. Isso pode ser percebido através da ênfase aos aspectos sensoriais oriundos da descrição da dificuldade que Pedro Bala tem em defecar.

10. Entre os Capitães da Areia vivia apenas uma mulher: Dora, personagem que:
a) teve um papel importante, encarnando, em momentos diversos, a figura de mãe, irmã e esposa.
b) representa a força feminina, nas obras de Jorge Amado, a partir da questão da prostituição e da marginalização social.
c) provocou uma série de problemas entre o grupo, que perduraram até a sua morte, por causa da varíola.
d) trouxe alívio apenas para os pequenos que faziam parte do grupo, porque, enquanto os outros saíam para os roubos, ela se responsabilizava pelos que ficavam.
e) tentava conseguir emprego como empregada doméstica, mas não conseguia, porque tinha contraído varíola, epidemia que havia assolado a cidade, provocando óbitos e medo.
A

11. Leia o trecho abaixo e responda a questão a seguir.

Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. (...)
Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. (...)
Então os lábios de Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia roubar a si próprio também.
Jorge Amado. Capitães da Areia.
Analise as afirmações abaixo:

I. A decisão de Sem-Pernas de retornar ao bando lhe parece a mais acertada e é a que lhe traz mais alegria.
II. Sem-Pernas vive neste momento um conflito interno entre a lealdade ao bando que o acolheu e o amor da família que o aceitara como filho.
III. Apesar do amor dedicado pela família a Sem-Pernas, o menino percebe que, na verdade, esse acolhimento possui outra intenção.

São corretas apenas as afirmações:
a) II.
b) II e III
c) I, II e III
d) I e II.
e) III.
A

12. Analise as afirmações sobre Capitães da Areia e identifique as corretas:

I. Pirulito, convertido à religião, executou, com os demais, os roubos necessários à sobrevivência, sem jamais deixar de praticar a oração e sua fé em Deus.
II. Professor, o intelectual do grupo, deu início às leituras depois de um assalto em que roubara alguns livros, e conseguiu viver um romance inocente com Dora.
III. Dora e o irmão encontram os meninos do grupo Capitães de Areia após a morte de seus pais, por conta da varíola, e passaram a morar no trapiche com eles.
IV. Padre José Pedro tinha como objetivo fazer com que os meninos abandonados fossem, aos poucos, sendo adotados pelas inúmeras beatas que frequentavam sua igreja.
V. O enorme ódio que Sem-Pernas possuía de todos era resultado dos maus tratos que ele sofria nas casas nas quais ele se infiltrava antes de o grupo cometer o roubo.

a) I, III e V
b) I, II e IV
c) II e III
d) I e III
e) IV e V
D

Leia os trechos a seguir e responda à questão 13:

O Sem-Pernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite, quando o acabariam de armar. E saiu para encontrar Nhozinho-França. Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas, até mesmo Pirulito, que tinha quadros de santos na sua parede, até mesmo João Grande, que nessa noite iria com o Querido-de-Deus ao candomblé de Procópio, no Matatu, até mesmo o Professor, que lia livros, e quem sabe se também Pedro Bala, que nunca tivera inveja de nenhum porque era o chefe de todos? (...)
No começo da noite caiu uma carga d'água. Também as nuvens pretas logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam, brilhou também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon*. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, rilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas, do Grande Carrossel
Japonês.
Jorge A mado. Capitães da Areia.
* Lorgnon (francês) tipo de óculos, sem hastes, montado numa armação com um cabo.

13. Baseando-se nesses trechos, retirados do capítulo “As luzes do carrossel”, pode-se afirmar que:

a) é um momento marcante para os meninos que voltam a ser crianças quando andam no carrossel graças ao dinheiro que o Padre José Pedro havia retirado da doação para a compra de velas.
b) fica nítida a visão dos Capitães da Areia como simples crianças, as quais andam no carrossel graças à generosidade da beata Margarida.
c) configura um momento emocionante na vida dos Capitães da Areia, mostrando-os como crianças, tal qual acreditava o padre José Pedro.
d) é um momento em que o grupo de meninos se parece com um grupo de crianças, apesar de terem conseguido andar no brinquedo graças às ameaças feitas ao dono, Nhozinho França.
e) Sem-Pernas e Volta Seca, os mais revoltados do bando, são justamente os que se mostram mais felizes com a brincadeira pueril, proporcionada pelo padre, amigo deles.
C

terça-feira, 21 de agosto de 2012

ALBERTO CAEIRO - Prova 2º ano - COC Araraquara / Matão


PROF. VALMIR LUIS

Galerinha, tudo bem? Montei um roteiro para entendermos, para a prova, a poética e a temática essenciais de Pessoa (Alberto Caeiro) e Bandeira. Abaixo, os nomes dos poemas, mais abaixo ainda, links e poemas das obras "Poemas completos de Alberto Caeiro" e "Libertinagem".

Bom divertimento.
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Poemas completos de Alberto Caeiro
Poemas essenciais
I, II, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XXVIII, XXXII, XXXIX, XLII, XLVII

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O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)

I - Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
  
V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei.Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

VI - Pensar em Deus

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ...

VII - Da Minha Aldeia

Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
.....................................................................
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

IX - Sou um Guardador de Rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

X - Olá, Guardador de Rebanhos

"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."

XI - Aquela Senhora tem um Piano

Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

XXVIII - Li Hoje

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

XXXII - Ontem à Tarde

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber faze-lo sem pensar nisso.
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

XXXIX - O Mistério das Cousas

O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

XLII - Passou a Diligência

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.

XLVII - Num Dia Excessivamente Nítido

Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.