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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Resenha: A PELE QUE HABITO


O presente trabalho obteve nota máxima na disciplina "Cinema e literatura", ministrada pela professora Scheila Pellegri na UNESP - FCLAr. Ele consiste numa resenha do filme “A pele que habito” (2011), dirigido por Pedro Almodóvar, a partir dos elementos de horror que fazem parte das opções de construção estética do diretor .

O horror como construção estética

Se o horror, como conseguimos depreender da análise de Das Unheimliche, do arqui-famoso psicanalista Sigmund Freud, está relacionado com o rompimento das expectativas de qualquer ação por meio de circunstâncias tais como o “medo da castração”, a “onipotência do pensamento” e o “duplo”, podemos afirmar que a narrativa fílmica La piel que habito (2011) – “A pele que habito” – realizada por Pedro Almodóvar é sutil, bem lavrada, mas é horror.
O longa-metragem estrategicamente não linear nos conta, em três atos, a história de Robert Ledgard – representado por Antonio Banderas. Num primeiro momento o que se vê é Robert realizando experimentos, no melhor estilo ficção(?) científica. Para análise um pouco mais aprofundada, vejamos o que nos diz De Sá, em seu artigo “Horror e Epifania” (2011),

Greimas, em seu Da Imperfeição, chama a atenção para um recurso utilizado na construção do sentido em que é a descontinuidade no discurso, a ruptura na vida representada, o detonador da passagem para um novo estado de coisas. Tal descontinuidade, fruto do que se pode chamar um deslumbramento, provoca uma fratura.

A partir disso, podemos afirmar que a delicadeza com que são mostrados os atos científicos pouco ortodoxos do Dr. Robert, a relação dele com Vera – o “experimento” –, que permanece trancada numa “cela”, a obsessão em encontrar uma pele extremamente resistente para ela, só podem ser compreendidos nas cenas seguintes e em flashbacks que vão sendo colocados no interior da narrativa. É a descontinuidade, portanto, que envolve o espectador e que faz com que ele, no decorrer do tempo, sinta o horror e o sentimento catártico às avessas de habitar a pele de outro.
            Os atos seguintes, portanto, fazem com que o espectador junte as peças descontínuas propostas pelo filme. Os transtornos psicológicos das personagens são apresentados de maneira tensa. Há seis anos, a esposa do cirurgião plástico Robert Lodegard teve o corpo completamente queimado ao envolver-se em um acidente de carro. Apesar de seus esforços, o médico nada pode fazer para ajudar na recuperação estética da mulher, que agora vive em completa escuridão e sem poder ver espelhos. A primeira tragédia é seu suicídio, que é presenciado por Norma, filha do casal, e que abala a jovem menina fazendo com que ela passe a viver à base de remédios e afastada da sociedade.
            Tempos depois, a segunda tragédia acontece: Norma, que vivera afastada, vai a uma festa e, o diretor parece querer que fiquemos em dúvida, é violentada por um rapaz, que depois se descobrirá que é Vicente, e acaba vindo a óbito. A dúvida, no caso, é se Norma queria ou não transar com o rapaz. Isto posto, Robert vai atrás do homem que “enganou” sua filha e, com ganas de vingança, aprisiona-o.
            O espectador sente o terror em forma de mal estar, o doutor barbeia Vicente e a navalha que ele porta parece querer dizer mais do que podemos compreender naquele momento, é “medo de sentir dor” que nos invade. Mas a compreensão vem e, aos poucos, percebe-se que a sanha de Robert o cegara. Em princípio, quer ele fazer com que Vicente pague pela tragédia que ele causara e, valendo-se de sua posição de cirurgião plástico, faz nele uma vaginoplastia. O horror aqui se encontra com o “medo da castração”, descrito por Freud.
Com o poder nas mãos, o doutor parece querer fazer com que Vicente pague por todas as tragédias e, nele, inicia os trabalhos de pesquisa, a fim de criar a pele mais resistente possível. Inundado de culpa pela incapacidade de ajudar a mulher a livrar-se daquela aparência de monstro que tivera antes do suicídio, resolve ele castigar sua cobaia com tais experimentos.
O horror não nos é colocado de chofre, ele é lançado calmamente. As peles que são postas e sobrepostas na cobaia Vicente transformam-no em Vera e o espectador compreende que o doutor resolvera recriar uma imagem idealizada da mulher no suposto estuprador, talvez para sentir-se menos culpado. A descoberta do absurdo da situação, da androginia transexualidade choca menos do que a crescente paixão que o criador sente por sua criatura.
O estarrecimento não sai em forma de grito, ele é contido, calmo e segue uma lógica que perturba: Vicente entra em contato com o seu par de oposição e, agora, é obrigado a assumir-se como Vera; Robert recria seu objeto de amor e, agora, vive as antíteses de amor e ódio; e o espectador vive a angústia de sentimentos dos dois e sente-se inundado de inquietações e de perguntas do tipo “seria isso possível?”, desconfiando sempre da idoneidade do homem.
A prática sexual de Robert e Vera é bela, porém deixa o espectador nauseado por compreender do que são feitas essas personagens, é esse o estranhamento familiar freudiano que escapa das telas e nos invade. De fato, aquela comunhão parece deixar claro que, apesar dos disparates da situação, os “duplos” irão integrar-se, entretanto, a fratura no cotidiano faz com que Vicente/Vera volte-se contra seu criador e num ato de decisão absoluta e de liberdade, atira no cirurgião. O incômodo que se sente ao decorrer do filme, ao invés do que se poderia imaginar, não se encerra ali. Ao final, Vera foge após ter matado Robert, volta para casa e vai ter de explicar para a mãe como aquela linda mulher pode ser o rapaz que há tempos desaparecera.
Ao espectador resta o incômodo permanente do duplo, da ruptura, da intencionalidade e da força das paixões no ser humano. O filme permanece, mas nunca como uma boa lembrança.


REFERÊNCIAS
SÁ, Sheila Pelegri de. Horror e epifania. A imperfeição reveladora em Anticristo e Cisne negro. in: XII Congresso Internacional da ABRALIC. 2011.

Obra fílmica
A pele que habito. Título original “La piel que habito” (2011). Espanha. Dir. Pedro Almodóvar 

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