Em Senhora,
Aurélia Camargo, moça pobre e órfã de pai, ficou noiva de Fernando Seixas,
rapaz de boa índole, mas desfibrado pelo desejo de carreira fácil e brilhante.
Em parte pelo fato de ser pobre, em parte pela perspectiva de um bom dote,
Fernando abandona a noiva, que se desilude com os homens. Inesperadamente,
morre-lhe o avô e ela fica milionária. Movida por vários impulsos e motivos,
manda propor a Fernando que a despose mediante um dote de cem contos de réis,
quantia avultadíssima na época. Envolvido em dificuldades financeiras, o rapaz
aceita; mas na noite do casamento, Aurélia, manifestando desprezo profundo,
comunica-lhe que deverão viver lado a lado, como estranhos, embora unidos ante
a opinião pública. Fernando compreende o sentido de compra a que se sujeitara e
toma consciência da leviana futilidade em que vivia. Numa espécie de longo
duelo, marido e mulher se põem à prova, até que Fernando consegue a soma
necessária para devolver o que recebeu e propõe a separação. Entrementes o seu
caráter se forjara, enquanto se abrandava a dureza de Aurélia. O desenlace é a
reconciliação de ambos, cujo amor havia crescido com a experiência.
(CANDIDO, Antonio e
CASTELO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. São Paulo:
Difel, 1984. v. II, pp. 287-8)
Vejamos agora a cena final do romance, o momento de reconciliação
dos amantes. Repare nas palavras de Fernando sobre a educação de um homem da
Corte para o casamento. Repare também na função do dinheiro, que gerou a
infelicidade conjugal. Por fim, repare que o desapego ao dinheiro restitui a
felicidade ao casal.
A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamento, e que desde então ela nunca mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.
Ouça-me; [––fala Fernando Seixas a Aurélia]
desejo que em um dia remoto, quando refletir sobre este acontecimento, me
restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade no seio da qual me
eduquei, fez de mim um homem à sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu
não via através da fascinação o materialismo a que eles me arrastavam.
Habituei-me a considerar a riqueza como a primeira força viva da existência, e
os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo de adquiri-la,
como a herança e qualquer honesta especulação. Entretanto assim, a senhora me
teria achado inacessível à tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me,
não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da
pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividado, como achei-me o causador,
embora involuntário, da infelicidade de minha irmã cujas economias eu havia
consumido, e que ia perder um casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo
minha mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu
tinha disposto imprevidentemente pensando que os poderia refazer mais tarde!...
Tudo isto abateu-me. Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica
a abdicação da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem;
naquele tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora
regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.
Aurélia ouviu imóvel. Seixas
concluiu:
Eis o que pretendia dizer-lhe
antes de separarmo-nos para sempre.
Também eu desejo que não leve de
mim uma suspeita injusta. Como sua
mulher, não me defenderia; desde porém que já não somos nada um para o outro,
tenho o direito de reclamar o respeito devido a uma senhora.
Aurélia referiu sucintamente o
que Eduardo Abreu fizera quando falecera D. Emília, e a resolução que ela
tomara de salvá-lo do suicídio.
Eis a razão por que chamei esse
moço a minha casa. Seu segredo não me pertencia; e entre mim e o senhor não
existia a comunidade que faz de duas almas uma.
Aurélia
reuniu o cheque e os maços de dinheiro que estavam sobre a mesa.
Este
dinheiro é abençoado. Diz o senhor que ele o regenerou, e acaba de o
restituir muito a propósito para realizar um pensamento de caridade e servir a
outra regeneração.
A
moça abriu uma gaveta da escrivaninha e guardou nela os valores; depois
do que bateu o tímpano; a mucama apareceu.
Permita-me,
disse Aurélia e voltou-se para dar em voz baixa uma ordem à
escrava.
Esta
acendeu o gás nas arandelas da câmara nupcial e retirou-se,
enquanto Aurélia dizia ao marido, mostrando o aposento iluminado:
Não
quero que erre o caminho.
Agora
não há perigo.
Agora?
repetiu a moça com um olhar que perturbou Seixas.
Houve
uma pausa.
Talvez
a senhora para evitar a curiosidade pública, deseje um pretexto?
Para
que?
A
viagem à Europa seria o melhor. O paquete deve partir nestes quinze
dias. Uma prescrição médica tudo explicará, a separação e a urgência. Mais
tarde quando venham a saber, já não causará surpresa.
Aurélia
deixou perceber ligeira comoção. Entretanto foi com a voz firme
que respondeu:
Desde
que uma coisa se tem de fazer, o melhor é que se faça logo e sem
evasivas.
Fernando
ergue-se de pronto:
Neste
caso receba minhas despedidas.
Aurélia
de seu lado erguera-se também para cortejar o marido.
Adeus,
senhora. Acredite...
Sem
cumprimentos! atalhou a moça. Que poderíamos dizer um ao outro que
já não fosse pensado por ambos?
Tem
razão.
Seixas
recuou um passo até o meio do aposento, e fez uma profunda cortesia, à qual
Aurélia respondeu. Depois atravessou lentamente a câmara nupcial agora
iluminada. Quando erguia o reposteiro ouviu a voz da mulher.
Um
instante! disse Aurélia.
Chamou-me?
O passado está extinto. Estes
onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas
aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o
senhor já não é mais meu marido. Somos dois estranhos. Não é verdade?
Seixas confirmou com a cabeça.
Pois bem, agora ajoelho-me eu a
teus pés, Fernando, e suplico-te que
aceites meu amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente
ofendia-te.
A moça travara das mão de Seixas
e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela
infligira ao mancebo ajoelhado a seus pés, a cruel afronta.
Aquela que te humilhou, aqui a
tens abatida, no mesmo lugar onde
ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando teu perdão e feliz
porque te adora, como o senhor de sua alma.
Seixas ergueu nos braços a
formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os
lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto
perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com um gesto grave a linda
cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar
repassado de profunda tristeza.
Não,
Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
A
moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um papel
lacrado que entregou a Seixas.
O
que é isto, Aurélia?
Meu
testamento.
Ela
despedaçou o lavre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um
testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o
instituía seu universal herdeiro.
Eu
o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse
naquela noite, disse Aurélia com gesto sublime.
Seixas
contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
Esta
riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de
a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.
As
cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores,
cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática,
1994.
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