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sábado, 19 de novembro de 2011

1º ANO - Senhora, José de Alencar


Em Senhora, Aurélia Camargo, moça pobre e órfã de pai, ficou noiva de Fernando Seixas, rapaz de boa índole, mas desfibrado pelo dese­jo de carreira fácil e brilhante. Em parte pelo fato de ser pobre, em parte pela perspectiva de um bom dote, Fernando abandona a noiva, que se desilude com os homens. Inesperadamente, morre-lhe o avô e ela fica milionária. Movida por vários impulsos e motivos, manda propor a Fernando que a despose mediante um dote de cem contos de réis, quantia avultadíssima na época. Envolvido em dificuldades financeiras, o rapaz aceita; mas na noite do casamento, Aurélia, manifestando desprezo profundo, comunica-lhe que deverão viver lado a lado, como estranhos, embora unidos ante a opinião pública. Fernando compreende o sentido de compra a que se sujeitara e toma consciên­cia da leviana futilidade em que vivia. Numa espécie de longo duelo, marido e mulher se põem à prova, até que Fernando consegue a soma necessária para devolver o que recebeu e propõe a separação. Entrementes o seu cará­ter se forjara, enquanto se abrandava a dureza de Aurélia. O desenlace é a reconciliação de ambos, cujo amor havia crescido com a expe­riência.
(CANDIDO, Antonio e CASTELO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. São Paulo: Difel, 1984. v. II, pp. 287-8)

Vejamos agora a cena final do romance, o momento de reconciliação dos amantes. Re­pare nas palavras de Fernando sobre a educa­ção de um homem da Corte para o casamento. Repare também na função do dinheiro, que gerou a infelicidade conjugal. Por fim, repare que o desapego ao dinheiro restitui a felici­dade ao casal.

   Eram dez horas da noite.
  Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com o marido um olhar de in­teligência, estava nesse momento em seu touca­dor, sentada em frente à elegante escrivaninha de araribá cor-de-rosa, com relevos de bronze dourado a fogo.
  A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamen­to, e que desde então ela nunca mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.
Ouça-me; [––fala Fernando Seixas a Auré­lia] desejo que em um dia remoto, quando refle­tir sobre este acontecimento, me restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me a con­siderar a riqueza como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta espe­culação. Entretanto assim, a senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me, não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividado, como achei-me o cau­sador, embora involuntário, da infelicidade de minha irmã cujas economias eu havia consumi­do, e que ia perder um casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto imprevidentemente pensando que os poderia refazer mais tarde!... Tudo isto abateu-me. Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.
Aurélia ouviu imóvel. Seixas concluiu:
Eis o que pretendia dizer-lhe antes de separarmo-nos para sempre.
Também eu desejo que não leve de mim uma suspeita injusta. Como sua mulher, não me defenderia; desde porém que já não somos nada um para o outro, tenho o direito de reclamar o respeito devido a uma senhora.
Aurélia referiu sucintamente o que Eduardo Abreu fizera quando falecera D. Emília, e a reso­lução que ela tomara de salvá-lo do suicídio.
Eis a razão por que chamei esse moço a minha casa. Seu segredo não me pertencia; e entre mim e o senhor não existia a comunidade que faz de duas almas uma.
  Aurélia reuniu o cheque e os maços de di­nheiro que estavam sobre a mesa.
  Este dinheiro é abençoado. Diz o senhor que ele o regenerou, e acaba de o restituir mui­to a propósito para realizar um pensamento de caridade e servir a outra regeneração.
  A moça abriu uma gaveta da escrivaninha e guardou nela os valores; depois do que bateu o tímpano; a mucama apareceu.
  Permita-me, disse Aurélia e voltou-se para dar em voz baixa uma ordem à escrava.
  Esta acendeu o gás nas arandelas da câ­mara nupcial e retirou-se, enquanto Aurélia dizia ao marido, mostrando o aposento iluminado:
  Não quero que erre o caminho. 
  Agora não há perigo. 
  Agora? repetiu a moça com um olhar que perturbou Seixas.
  Houve uma pausa. 
  Talvez a senhora para evitar a curiosidade pública, deseje um pretexto?
  Para que? 
  A viagem à Europa seria o melhor. O pa­quete deve partir nestes quinze dias. Uma pres­crição médica tudo explicará, a separação e a urgência. Mais tarde quando venham a saber, já não causará surpresa.
  Aurélia deixou perceber ligeira comoção. Entretanto foi com a voz firme que respondeu:
  Desde que uma coisa se tem de fazer, o melhor é que se faça logo e sem evasivas.
  Fernando ergue-se de pronto:
  Neste caso receba minhas despedidas. 
  Aurélia de seu lado erguera-se também para cortejar o marido.
  Adeus, senhora. Acredite...  
  Sem cumprimentos! atalhou a moça. Que poderíamos dizer um ao outro que já não fosse pensado por ambos?
  Tem razão. 
  Seixas recuou um passo até o meio do apo­sento, e fez uma profunda cortesia, à qual Auré­lia respondeu. Depois atravessou lentamente a câmara nupcial agora iluminada. Quando erguia o reposteiro ouviu a voz da mulher.
  Um instante! disse Aurélia. 
  Chamou-me?
O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor já não é mais meu marido.      Somos dois estranhos. Não é verdade?
Seixas confirmou com a cabeça.
Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te.
A moça travara das mão de Seixas e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelha­do a seus pés, a cruel afronta.
Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando teu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.
Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com um gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.
  Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
  A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas.
  O que é isto, Aurélia? 
  Meu testamento. 
  Ela despedaçou o lavre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro.
  Eu o escrevi logo depois do nosso casa­mento; pensei que morresse naquela noite, dis­se Aurélia com gesto sublime.
  Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
  Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.
 As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.
                                            ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1994.

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