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sábado, 19 de novembro de 2011

1º Ano - IRACEMA, José de Alencar

       Os três romances indianistas de José de Alencar O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) cumprem uma função ideológica, que vem a ser a de criar um mito sobre a origem do povo brasileiro. Em tais romances, o cenário e o índio surgem como essência de uma natureza paradisíaca, pura, que o branco europeu alterará com sua presença, fazendo surgir uma nova raça, um novo povo e uma nova civilização.
       Em Iracema (1865) José de Alencar, ou por ter atingido a maturidade nos temas indianistas, ou porque nessa obra não há a rigor nenhum compromisso com uma afirmação nacional pela literatura, atinge seu romance mais bem estruturado, sob o ponto de vista estético.Iracema é o exemplar mais perfeito de prosa poética de nossa ficção romântica, belíssimo exemplo do nacionalismo ufanista e indianista, com o qual Alencar contribuiu com a construção da literatura e da cultura brasileira.
No romance há um argumento histórico: a colonização do Ceará, que se deu em 1606. Nele há a presença de personagens históricos: Martim Soares Moreno, o colonizador português que se aliou aos índios Pitiguaras e Poti, Antônio Felipe Camarão. Através do romance entre Iracema e Martim, José de Alencar romantizou o processo de colonização do Ceará, simbolicamente representativo do processo de colonização do Brasil. Iracema apresenta uma espécie de conciliação entre o branco e o índio, na medida em que romantiza a dominação de um povo pelo outro. Desta forma insere nos códigos artísticos do Romantismo europeu a temática do processo de colonização do país. Com a obra se inaugura o mito heróico da pátria, de natureza indianista.
Portanto, o espaço da obra é o Estado do Ceará e o tempo é o início do século XVII.
O relacionamento amoroso entre Iracema e Martim pode ser interpretado, simbolicamente, como metáfora, como alegoria representativa do cruzamento das raças indígena e branca, ou seja, o nativo e o europeu colonizador. O desenvolvimento do enredo - ruptura de Iracema com o compromisso de virgem vestal e com sua tribo, sua entrega amorosa, seu abandono e sua morte, deixando o filho Moacir, "aquele que nasce da dor", - todos esses elementos da trama narrativa confirmam a possibilidade de leitura simbólica. A própria construção do personagem Iracema é feita a partir da natureza, de comparações com elementos da fauna e da flora americana, em geral brasileira e mais especificamente do Ceará.
A índia Iracema, que se entrega por amor a Martim, tem a função de simbolizar, no romance, a presença do elemento nacional, da cor local, existente na criação de seus traços físicos, que é feita por comparação com elementos da natureza. Embora psicologicamente Iracema se assemelhe às heroínas românticas européias, constitui, nessa fusão de elementos da cor local com elementos do romantismo europeu, um mito fundador da pátria. De acordo com o romantismo europeu, Iracema pode ser caracterizada como um exemplo de "mulher-anjo" - virgem, delicada, bela, capaz de se sacrificar pelo homem que ama, Martim. Essa característica de Iracema mostra que embora o narrador privilegie os seus sentimentos e pensamentos ao longo da história, idealizando o índio, que ela representa, o seu ponto de vista ao contar torna-se o do branco colonizador, na medida em que "europeiza" e "romantiza" Iracema.
Quanto à importância relativa das personagens, Alencar constrói uma obra inteiramente distinta de O Guarani (e também do posterior Ubirajara, que data de 1874). Em Iracema, a relação amorosa entre a jovem índia e o fidalgo português Martim domina toda a obra.
Não é difícil encontrar as fontes principais em que se inspirou Alencar: Iracema é, num certo sentido (não o da imitação, evidentemente), a transposição de Atala, de Chateaubriand, autor que Alencar confessou ter lido bastante. Temos, pois, o caso de uma composição homóloga, pois apresenta vários pontos em comum: o tema da felicidade primitiva dos selvagens, que começa a se corromper diante da primeira aproximação do civilizado; a idéia do bom selvagem; o amor de uma índia por um estrangeiro; a morte das duas heroínas, o exótico da paisagem; enfim, nas duas obras de um conflito fundamental representado pela oposição de índole dos dois mundos: o da velha civilização européia e o Novo Mundo da América. 
O romance, na definição de Machado de Assis, é uma "poema em prosa", é um poema épico-lirico (para Machado de Assis, é um poema essencialmente lírico).

IRACEMA
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graú­na e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a more­na virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orva­lho da noite. Os ramos da acácia silvestre espar­ziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem, os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que co­rou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco e concerta com o sabiá da mata, pousa­do no galho próximo, o canto agreste.
     A graciosa ará, sua companheira e ami­ga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfu­mes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda e as tintas de que matiza o algodão.
    Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
    Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas fa­ces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
   Foi rápido, como o olhar, o gesto de Irace­ma. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
   De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.
  O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guer­reiro, sentida da mágoa que causara.
  A mão que rápida ferira estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando con­sigo a ponta farpada.
 O guerreiro falou:
 Quebras comigo a flecha da paz?
 Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerrei­ro como tu?
 Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
   Bem-vindo seja o estrangeiro aos cam­pos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.
ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1997.
Pergunta:
Iracema encontra-se em comunhão com o cenário em que vive. A harmonia, entre­tanto, é rompida com a chegada do guer­reiro branco. Levando em consideração os ideais românticos indianistas e nacionalis­tas de José de Alencar, o que simboliza a chegada do guerreiro branco?
Resposta:
A chegada do guerreiro branco simboli­za o fim da pureza paradisíaca da América e o encontro entre as duas civilizações: a europeia e a indígena.

1º ANO - Senhora, José de Alencar


Em Senhora, Aurélia Camargo, moça pobre e órfã de pai, ficou noiva de Fernando Seixas, rapaz de boa índole, mas desfibrado pelo dese­jo de carreira fácil e brilhante. Em parte pelo fato de ser pobre, em parte pela perspectiva de um bom dote, Fernando abandona a noiva, que se desilude com os homens. Inesperadamente, morre-lhe o avô e ela fica milionária. Movida por vários impulsos e motivos, manda propor a Fernando que a despose mediante um dote de cem contos de réis, quantia avultadíssima na época. Envolvido em dificuldades financeiras, o rapaz aceita; mas na noite do casamento, Aurélia, manifestando desprezo profundo, comunica-lhe que deverão viver lado a lado, como estranhos, embora unidos ante a opinião pública. Fernando compreende o sentido de compra a que se sujeitara e toma consciên­cia da leviana futilidade em que vivia. Numa espécie de longo duelo, marido e mulher se põem à prova, até que Fernando consegue a soma necessária para devolver o que recebeu e propõe a separação. Entrementes o seu cará­ter se forjara, enquanto se abrandava a dureza de Aurélia. O desenlace é a reconciliação de ambos, cujo amor havia crescido com a expe­riência.
(CANDIDO, Antonio e CASTELO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira. São Paulo: Difel, 1984. v. II, pp. 287-8)

Vejamos agora a cena final do romance, o momento de reconciliação dos amantes. Re­pare nas palavras de Fernando sobre a educa­ção de um homem da Corte para o casamento. Repare também na função do dinheiro, que gerou a infelicidade conjugal. Por fim, repare que o desapego ao dinheiro restitui a felici­dade ao casal.

   Eram dez horas da noite.
  Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com o marido um olhar de in­teligência, estava nesse momento em seu touca­dor, sentada em frente à elegante escrivaninha de araribá cor-de-rosa, com relevos de bronze dourado a fogo.
  A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamen­to, e que desde então ela nunca mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.
Ouça-me; [––fala Fernando Seixas a Auré­lia] desejo que em um dia remoto, quando refle­tir sobre este acontecimento, me restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da fascinação o materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me a con­siderar a riqueza como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio tão legítimo de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta espe­culação. Entretanto assim, a senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo depois que seu tutor procurou-me, não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividado, como achei-me o cau­sador, embora involuntário, da infelicidade de minha irmã cujas economias eu havia consumi­do, e que ia perder um casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto imprevidentemente pensando que os poderia refazer mais tarde!... Tudo isto abateu-me. Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação da dignidade. Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.
Aurélia ouviu imóvel. Seixas concluiu:
Eis o que pretendia dizer-lhe antes de separarmo-nos para sempre.
Também eu desejo que não leve de mim uma suspeita injusta. Como sua mulher, não me defenderia; desde porém que já não somos nada um para o outro, tenho o direito de reclamar o respeito devido a uma senhora.
Aurélia referiu sucintamente o que Eduardo Abreu fizera quando falecera D. Emília, e a reso­lução que ela tomara de salvá-lo do suicídio.
Eis a razão por que chamei esse moço a minha casa. Seu segredo não me pertencia; e entre mim e o senhor não existia a comunidade que faz de duas almas uma.
  Aurélia reuniu o cheque e os maços de di­nheiro que estavam sobre a mesa.
  Este dinheiro é abençoado. Diz o senhor que ele o regenerou, e acaba de o restituir mui­to a propósito para realizar um pensamento de caridade e servir a outra regeneração.
  A moça abriu uma gaveta da escrivaninha e guardou nela os valores; depois do que bateu o tímpano; a mucama apareceu.
  Permita-me, disse Aurélia e voltou-se para dar em voz baixa uma ordem à escrava.
  Esta acendeu o gás nas arandelas da câ­mara nupcial e retirou-se, enquanto Aurélia dizia ao marido, mostrando o aposento iluminado:
  Não quero que erre o caminho. 
  Agora não há perigo. 
  Agora? repetiu a moça com um olhar que perturbou Seixas.
  Houve uma pausa. 
  Talvez a senhora para evitar a curiosidade pública, deseje um pretexto?
  Para que? 
  A viagem à Europa seria o melhor. O pa­quete deve partir nestes quinze dias. Uma pres­crição médica tudo explicará, a separação e a urgência. Mais tarde quando venham a saber, já não causará surpresa.
  Aurélia deixou perceber ligeira comoção. Entretanto foi com a voz firme que respondeu:
  Desde que uma coisa se tem de fazer, o melhor é que se faça logo e sem evasivas.
  Fernando ergue-se de pronto:
  Neste caso receba minhas despedidas. 
  Aurélia de seu lado erguera-se também para cortejar o marido.
  Adeus, senhora. Acredite...  
  Sem cumprimentos! atalhou a moça. Que poderíamos dizer um ao outro que já não fosse pensado por ambos?
  Tem razão. 
  Seixas recuou um passo até o meio do apo­sento, e fez uma profunda cortesia, à qual Auré­lia respondeu. Depois atravessou lentamente a câmara nupcial agora iluminada. Quando erguia o reposteiro ouviu a voz da mulher.
  Um instante! disse Aurélia. 
  Chamou-me?
O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor já não é mais meu marido.      Somos dois estranhos. Não é verdade?
Seixas confirmou com a cabeça.
Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te.
A moça travara das mão de Seixas e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelha­do a seus pés, a cruel afronta.
Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando teu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.
Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com um gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.
  Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
  A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas.
  O que é isto, Aurélia? 
  Meu testamento. 
  Ela despedaçou o lavre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro.
  Eu o escrevi logo depois do nosso casa­mento; pensei que morresse naquela noite, dis­se Aurélia com gesto sublime.
  Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
  Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.
 As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal.
                                            ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1994.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

1º ano - O GUARANI - José de Alencar


O texto seguinte exemplifica o heroísmo extraordinário que Alencar atribui ao índio brasileiro, dotado de grande força física e moral. A casa de D. Antonio Mariz fora destruída pelos Aimorés e pelo vilão Loredano. A explosão da casa provoca uma enorme enchente no rio Paraíba, que banhava a casa. Para evitar a morte de Cecília (Ceci), Peri foge com ela numa canoa, não sem antes ser batizado por D. Antonio, pai de Ceci.

Trecho final de "O guarani", de José de Alencar
(...)
Era alta noite; sombras espessas cobriam as margens do Paraíba. De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio profundo do ermo. Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.

O espelho das águas, liso e polido como um cristal, refletia a claridade das estrelas, que já desmaiavam com a aproximação do dia; tudo estava imóvel e quedo. O índio curvou-se sobre a borda da canoa, e de novo aplicou o ouvido; pela superfície do rio rolava um som estrepitoso: semelhante ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.

Cecília dormia tranqüilamente; sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem. Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio. Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliu-a para a terra com toda a força do remo, que fendeu a água rapidamente.

À beira do rio elevava-se uma bela palmeira, cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde, formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos das árvores vizinhas, desciam até o chão, formando grinaldas e cortinas de folhagem, que se prendiam às hastes da palmeira.

Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que se elevava diante dele.

Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso.

Ao longe o cristal da corrente achamalotou-se; as águas frisaram-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela areia da praia.

Logo todo o leito do rio cobriu-se com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um manto de seda.

Então no fundo da floresta troou um estampido horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas quebradas da serrania.

Era tarde.

Não havia tempo para fugir; a água tinha soltado o seu primeiro bramido, e, erguendo o colo, precipitava-se furiosa, invencível, devorando o espaço como algum monstro do deserto.

Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo: em vez de ganhar a mata, suspendeu-se
a um dos cipós, e, galgando o cimo da palmeira, ai abrigou-se com Cecília.

A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo. — A água!... respondeu ele, apontando para o horizonte.

Com efeito, uma montanha branca, fosforescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas.

A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo.

Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem.

Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens.

Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo.

As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano.

O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande cenário.

As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.

Cecília, apoiada ao ombro de seu amigo, assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer; mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto.

Em face desses transes solenes, desses grandes cataclismas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto, que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emudece e paralisa.

O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no oriente; seu aspecto majestoso iluminou o deserto; as ondas de sua luz brilhante derramaram-se em cascatas sobre um lago imenso, sem horizontes.

Tudo era água e céu.

A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea.

A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.

A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos.

A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida. Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios.

— Podemos morrer, meu amigo! disse ela com uma expressão sublime. Peri estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espírito revoltava-se contra aquela idéia, e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal.

— Não! exclamou ele. Tu não podes morrer.

A menina sorriu docemente.

— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe...

— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos.

— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é Deus... É o seu poder infinito!

— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento.

E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento.

Falou com um tom solene:

“Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.

“Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.

“Quando todos subiram aos montes ele disse:

‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.’

“Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.

“Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.

“A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.

“A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.

“A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.

“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriua terra.

“Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.

“Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.”

Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.

Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para recebê-la.

A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecília.

A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:

— Meu Deus!... Peri!...

Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.

Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.

Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade. Houve um momento de respouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível.

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:

— Tu viverás!...

Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...

O anjo espanejava-se para remontar ao berço.

— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

E sumiu-se no horizonte.