Em Iracema (1865) José de Alencar, ou por ter atingido a maturidade
nos temas indianistas, ou porque nessa obra não há a rigor nenhum compromisso
com uma afirmação nacional pela literatura, atinge seu romance mais bem
estruturado, sob o ponto de vista estético.Iracema é o exemplar mais perfeito de prosa poética de
nossa ficção romântica, belíssimo exemplo do nacionalismo ufanista e
indianista, com o qual Alencar contribuiu com a construção da literatura e da
cultura brasileira.
No romance há um argumento histórico: a colonização do Ceará, que
se deu em 1606. Nele há a presença de personagens históricos: Martim Soares
Moreno, o colonizador português que se aliou aos índios Pitiguaras e Poti,
Antônio Felipe Camarão. Através do romance entre Iracema e Martim, José de
Alencar romantizou o processo de colonização do Ceará, simbolicamente
representativo do processo de colonização do Brasil. Iracema apresenta uma espécie de conciliação entre o branco e o
índio, na medida em que romantiza a dominação de um povo pelo outro. Desta
forma insere nos códigos artísticos do Romantismo europeu a temática do
processo de colonização do país. Com a obra se inaugura o mito heróico da
pátria, de natureza indianista.
Portanto, o espaço da obra é o Estado do Ceará e o tempo é o
início do século XVII.
O relacionamento amoroso entre Iracema e Martim pode ser
interpretado, simbolicamente, como metáfora, como alegoria representativa do
cruzamento das raças indígena e branca, ou seja, o nativo e o europeu
colonizador. O desenvolvimento do enredo - ruptura de Iracema com o compromisso
de virgem vestal e com sua tribo, sua entrega amorosa, seu abandono e sua
morte, deixando o filho Moacir, "aquele que nasce da dor", - todos
esses elementos da trama narrativa confirmam a possibilidade de leitura
simbólica. A própria construção do personagem Iracema é feita a partir da
natureza, de comparações com elementos da fauna e da flora americana, em geral
brasileira e mais especificamente do Ceará.
A índia Iracema, que se entrega por amor a Martim, tem a função de
simbolizar, no romance, a presença do elemento nacional, da cor local,
existente na criação de seus traços físicos, que é feita por comparação com
elementos da natureza. Embora psicologicamente Iracema se assemelhe às heroínas
românticas européias, constitui, nessa fusão de elementos da cor local com
elementos do romantismo europeu, um mito fundador da pátria. De acordo com o
romantismo europeu, Iracema pode ser caracterizada como um exemplo de
"mulher-anjo" - virgem, delicada, bela, capaz de se sacrificar pelo
homem que ama, Martim. Essa característica de Iracema mostra que embora o
narrador privilegie os seus sentimentos e pensamentos ao longo da história,
idealizando o índio, que ela representa, o seu ponto de vista ao contar torna-se
o do branco colonizador, na medida em que "europeiza" e
"romantiza" Iracema.
Quanto à importância relativa das personagens, Alencar constrói
uma obra inteiramente distinta de O Guarani (e também do posterior Ubirajara, que data de 1874). Em Iracema, a relação amorosa entre a jovem índia e o fidalgo português
Martim domina toda a obra.
Não é difícil encontrar as fontes principais em que se inspirou
Alencar: Iracema é, num certo sentido (não o da
imitação, evidentemente), a transposição de Atala, de Chateaubriand, autor que Alencar confessou ter lido
bastante. Temos, pois, o caso de uma composição homóloga, pois apresenta vários
pontos em comum: o tema da felicidade primitiva dos selvagens, que começa a se
corromper diante da primeira aproximação do civilizado; a idéia do bom
selvagem; o amor de uma índia por um estrangeiro; a morte das duas heroínas, o
exótico da paisagem; enfim, nas duas obras de um conflito fundamental
representado pela oposição de índole dos dois mundos: o da velha civilização
européia e o Novo Mundo da América.
O romance, na definição de Machado de Assis, é uma "poema em
prosa", é um poema épico-lirico (para Machado de Assis, é um poema
essencialmente lírico).
IRACEMA
Além, muito além
daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema,
a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna
e mais longos que seu talhe de palmeira.
O
favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais
rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu,
mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras
águas.
Um
dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo
a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da
acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem,
os pássaros ameigavam o canto.
Iracema
saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou
em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de
seu arco e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto
agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga,
brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem
pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus
perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda e
as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da
sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um
guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem
nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das
águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema.
A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do
desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a
cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua
mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da
ferida.
O
sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem
lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa
que causara.
A mão que rápida ferira estancou mais rápida
e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida:
deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
Quebras comigo a flecha da paz?
Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem
de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro
como tu?
Venho de bem longe, filha das florestas. Venho
das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos
tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.
ALENCAR, José
de. Iracema. São Paulo: Ática, 1997.
Pergunta:
Iracema
encontra-se em comunhão com o cenário em que vive. A harmonia, entretanto, é
rompida com a chegada do guerreiro branco. Levando em consideração os ideais
românticos indianistas e nacionalistas de José de Alencar, o que simboliza a
chegada do guerreiro branco?
Resposta:
A chegada do guerreiro branco simboliza o fim da
pureza paradisíaca da América e o encontro entre as duas civilizações: a
europeia e a indígena.