O presente trabalho obteve nota máxima na disciplina "Cinema e literatura", ministrada pela professora Scheila Pellegri na UNESP - FCLAr. Ele consiste numa resenha do filme “A pele que habito” (2011), dirigido por Pedro
Almodóvar, a partir dos elementos de horror que fazem parte das opções de
construção estética do diretor .
O
horror como construção estética
Se o horror, como
conseguimos depreender da análise de Das Unheimliche,
do arqui-famoso psicanalista Sigmund Freud, está relacionado com o rompimento
das expectativas de qualquer ação por meio de circunstâncias tais como o “medo
da castração”, a “onipotência do pensamento” e o “duplo”, podemos afirmar que a
narrativa fílmica La piel que habito (2011)
– “A pele que habito” – realizada por Pedro Almodóvar é sutil, bem lavrada, mas
é horror.
O
longa-metragem estrategicamente não linear nos conta, em três atos, a história
de Robert Ledgard – representado por Antonio Banderas. Num primeiro momento o
que se vê é Robert realizando experimentos, no melhor estilo ficção(?)
científica. Para análise um pouco mais aprofundada, vejamos o que nos diz De
Sá, em seu artigo “Horror e Epifania” (2011),
Greimas,
em seu Da Imperfeição, chama a atenção para um recurso utilizado na construção
do sentido em que é a descontinuidade no discurso, a ruptura na vida
representada, o detonador da passagem para um novo estado de coisas. Tal
descontinuidade, fruto do que se pode chamar um deslumbramento, provoca uma
fratura.
A partir disso, podemos afirmar que a
delicadeza com que são mostrados os atos científicos pouco ortodoxos do Dr.
Robert, a relação dele com Vera – o “experimento” –, que permanece trancada numa “cela”, a
obsessão em encontrar uma pele extremamente resistente para ela, só podem ser
compreendidos nas cenas seguintes e em flashbacks
que vão sendo colocados no interior da narrativa. É a descontinuidade,
portanto, que envolve o espectador e que faz com que ele, no decorrer do tempo,
sinta o horror e o sentimento catártico às avessas de habitar a pele de outro.
Os
atos seguintes, portanto, fazem com que o espectador junte as peças
descontínuas propostas pelo filme. Os transtornos psicológicos das personagens
são apresentados de maneira tensa. Há seis anos, a esposa do cirurgião plástico
Robert Lodegard teve o corpo completamente queimado ao envolver-se em um
acidente de carro. Apesar de seus esforços, o médico nada pode fazer para
ajudar na recuperação estética da mulher, que agora vive em completa escuridão
e sem poder ver espelhos. A primeira tragédia é seu suicídio, que é presenciado
por Norma, filha do casal, e que abala a jovem menina fazendo com que ela passe
a viver à base de remédios e afastada da sociedade.
Tempos
depois, a segunda tragédia acontece: Norma, que vivera afastada, vai a uma
festa e, o diretor parece querer que fiquemos em dúvida, é violentada por um
rapaz, que depois se descobrirá que é Vicente, e acaba vindo a óbito. A dúvida,
no caso, é se Norma queria ou não transar com o rapaz. Isto posto, Robert vai
atrás do homem que “enganou” sua filha e, com ganas de vingança, aprisiona-o.
O
espectador sente o terror em forma de mal estar, o doutor barbeia Vicente e a
navalha que ele porta parece querer dizer mais do que podemos compreender
naquele momento, é “medo de sentir dor” que nos invade. Mas a compreensão vem
e, aos poucos, percebe-se que a sanha de Robert o cegara. Em princípio, quer
ele fazer com que Vicente pague pela tragédia que ele causara e, valendo-se de
sua posição de cirurgião plástico, faz nele uma vaginoplastia. O horror aqui se
encontra com o “medo da castração”, descrito por Freud.
Com o poder nas mãos, o
doutor parece querer fazer com que Vicente pague por todas as tragédias e,
nele, inicia os trabalhos de pesquisa, a fim de criar a pele mais resistente
possível. Inundado de culpa pela incapacidade de ajudar a mulher a livrar-se
daquela aparência de monstro que tivera antes do suicídio, resolve ele castigar
sua cobaia com tais experimentos.
O horror não nos é
colocado de chofre, ele é lançado calmamente. As peles que são postas e
sobrepostas na cobaia Vicente transformam-no em Vera e o espectador compreende
que o doutor resolvera recriar uma imagem idealizada da mulher no suposto
estuprador, talvez para sentir-se menos culpado. A descoberta do absurdo da
situação, da androginia transexualidade choca menos do que a crescente paixão
que o criador sente por sua criatura.
O estarrecimento não
sai em forma de grito, ele é contido, calmo e segue uma lógica que perturba:
Vicente entra em contato com o seu par de oposição e, agora, é obrigado a
assumir-se como Vera; Robert recria seu objeto de amor e, agora, vive as
antíteses de amor e ódio; e o espectador vive a angústia de sentimentos dos
dois e sente-se inundado de inquietações e de perguntas do tipo “seria isso
possível?”, desconfiando sempre da idoneidade do homem.
A prática sexual de
Robert e Vera é bela, porém deixa o espectador nauseado por compreender do que
são feitas essas personagens, é esse o estranhamento
familiar freudiano que escapa das telas e nos invade. De fato, aquela
comunhão parece deixar claro que, apesar dos disparates da situação, os
“duplos” irão integrar-se, entretanto, a fratura
no cotidiano faz com que Vicente/Vera volte-se contra seu criador e num ato
de decisão absoluta e de liberdade, atira no cirurgião. O incômodo que se sente
ao decorrer do filme, ao invés do que se poderia imaginar, não se encerra ali.
Ao final, Vera foge após ter matado Robert, volta para casa e vai ter de
explicar para a mãe como aquela linda mulher pode ser o rapaz que há tempos
desaparecera.
Ao
espectador resta o incômodo permanente do duplo, da ruptura, da
intencionalidade e da força das paixões no ser humano. O filme permanece, mas
nunca como uma boa lembrança.
REFERÊNCIAS
SÁ,
Sheila Pelegri de. Horror e epifania. A
imperfeição reveladora em Anticristo e
Cisne negro. in: XII Congresso
Internacional da ABRALIC. 2011.
Obra
fílmica
A pele que habito.
Título original “La piel que habito” (2011). Espanha. Dir. Pedro Almodóvar